Quebra de patente: entenda o que é e quais possíveis impactos
A disparidade sobre a escassez de vacinas da Covid-19 acendeu o debate sobre a quebra de patente dos imunizantes Por Lais Oliveira 17:57 | 04 de Junho de 2021
Países de alta renda, com 15% da população mundial, compraram 45% de todas as vacinas contra a Covid-19 disponíveis no mundo. Enquanto isso, cerca de dez países, a maioria na África, nem sequer aplicaram uma única dose. A disparidade denunciada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) acendeu o debate sobre a quebra de patente dos imunizantes. A medida não resolveria a falta de vacinas a curto prazo, mas abriria possibilidades para o futuro.
As patentes permitem o direito exclusivo de produzir e comercializar algum produto por meio de um título concedido pelo Estado. A licença compulsória dessas patentes, popularizada como “quebra de patente”, significa abrir mão temporariamente dessa exclusividade.
Contudo, suspender as patentes não seria suficiente para sanar a escassez de imunizantes contra a Covid-19 de forma célere, avalia o microbiologista Luiz Gustavo de Almeida, do Instituto Questão de Ciência (IQC). No Brasil, o maior obstáculo seria a falta de infraestrutura e tecnologia adequada para a fabricação do imunizante em larga escala.
“Outras empresas que poderiam produzir também teriam que aprender a fazer toda a metodologia, adaptar as fábricas para fazer essas vacinas, que não é nada trivial de conseguir fazer”, completa. O pesquisador estima que seriam necessários de dois a três anos para adaptar no País instalações que permitissem a produção completa de imunizantes como o da Pfizer que utiliza a tecnologia do RNA mensageiro (RNAm), assim como a vacina da Moderna.
Apenas duas instituições brasileiras teriam capacidade técnica para incorporar novas tecnologias de imunizantes e desenvolvê-las no País: o Instituto Butantan, em São Paulo, e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. Ambas estão envolvidas na produção da CoronaVac e da vacina de Oxford/AstraZeneca, respectivamente.
Uma nova linha de fabricação demandaria a suspensão da atual produção, pois não há espaço ocioso nas plantas. Além disso, a incorporação de novas tecnologias não é algo simples. Um exemplo é a fabricação da própria vacina de Oxford/AstraZeneca, baseada na tecnologia de vetor viral, nunca antes produzida por aqui. A Fiocruz levou meses para adaptar uma planta à nova produção e, até agora, ainda não começou a produzir o Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) em larga escala.
Possíveis caminhos
Uma solução mais rápida para tentar conter a pandemia causada pelo Sars-CoV-2 seria que países com imunização avançada compartilhassem vacinas. É o caso dos Estados Unidos, China e União Europeia, que prometeram doações de imunizantes a países de baixa renda.
Nos EUA cerca de 163,9 milhões de pessoas — 60% da população adulta — já receberam ao menos uma dose dos imunizantes usados no país. Enquanto isso, a África administrou pouco mais de 25 milhões de doses de vacina, ou 1,5% do total global, segundo a OMS.
Outra esperança no horizonte é uma vacina produzida 100% no Brasil. A aposta do momento é a ButanVac, imunizante que vem sendo desenvolvido pelo Instituto Butantan e aguarda a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para ser testado em seres humanos. No Ceará, a vacina estudada pela Universidade Estadual do Ceará (Uece) — a HH-120-Defenser — também espera a mesma permissão.
Além dos impasses técnicos, outro entrave para produção de vacinas, mesmo após uma eventual quebra de patentes, é a disponibilidade de insumos. Recentemente, o Instituto Butantan e a Fiocruz retomaram a produção de vacina que havia sido paralisada devido à falta do IFA.
Na análise do professor Márcio Viana Ramos, docente do Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular da Universidade Federal do Ceará (UFC), a falta de insumo extrapola questões comerciais. Ele argumenta que o Brasil tem capacidade intelectual científica, “mas não infraestrutura, financiamento e vontade política.”
“Claro que a indústria que tem a reserva resiste a ceder a patente, mas isso traz como benefício maior para a produção do bem e até diminuição do preço.” Márcio Viana Ramos, professor do Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular da UFC
Apesar disso, Márcio defende a licença compulsória como medida de democratização dos imunizantes. “Claro que a indústria que tem a reserva resiste a ceder a patente, mas isso traz como benefício maior para a produção do bem e até diminuição do preço”, comenta.
Essa queda no preço da vacina tende a ocorrer mais numa perspectiva de longo prazo, pensando no enfrentamento a novas pandemias causadas por coronavírus ou mesmo no caso de a Covid-19 se tornar uma endemia, como a gripe. (Com Agência Estado e Agência Brasil)
Quebra de patentes no Brasil: histórico e repercussões
A discussão sobre quebra de patentes não é novidade no Brasil. A hipótese já existe no próprio ordenamento jurídico brasileiro (Lei nº 9.279, de 1996) e em tratados internacionais como o Acordo TRIPs – Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (em português, Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio).
Para a licença compulsória das patentes, a lei brasileira determina que deve ser declarado “emergência nacional” ou “interesse público” pelo Poder Executivo Federal. No País, a medida foi utilizada em 2007 com o medicamento Efavirenz, usado para o tratamento da aids.
Foto: Fiocruz/Divulgação
No Brasil, a quebra de patente foi utilizada em 2007 com o medicamento efavirenz para o combate da Aids.
A efetivação da licença compulsória se deu após negociação frustrada entre o laboratório Merck Sharp & Dohme, detentor da patente do remédio, e o Ministério da Saúde. O governo propôs que o laboratório praticasse o mesmo preço pago pela Tailândia, de US$ 0,65 por cada comprimido de 600mg, enquanto o Brasil pagava US$ 1,59.
Porém, a empresa sugeriu uma redução de 2%, que foi recusada. Após licenciamento compulsório, o País passou a importar genéricos da Índia, economizando US$ 30 milhões só em 2007.
Em relação à proposta para o combate à Covid-19, não há medicamento ou imunizante específico a ser alvo de uma quebra de patente. A ideia levada à Organização Mundial do Comércio (OMC) é uma espécie de licença compulsória generalizada.https://view.genial.ly/60afbf984be8790d8cf4faba
A advogada Ana Carolina, gestora do Núcleo de Inovação Tecnológica da UFC (UFCInova), acredita que uma melhor alternativa seria o esforço de cooperação internacional, principalmente considerando as limitações infraestruturas do País. “A melhor saída é através da flexibilização de acordos internacionais, dirigidos ao convencimento das empresas detentoras do know-how necessário ao momento pandêmico”, aponta.
Segundo ela, que também é mestranda em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), a medida poderia incluir a utilização da invenção a preços módicos, com compartilhamento das informações junto à comunidade científica.
“A melhor saída é através da flexibilização de acordos internacionais, dirigidos ao convencimento das empresas detentoras do know-how necessário ao momento pandêmico.” Ana Carolina, advogada e gestora do Núcleo de Inovação Tecnológica da UFC (UFCInova)
O Senado Federal aprovou no último dia 29 de abril projeto de lei (PL nº 12/2021) que trata da quebra de patentes na produção de remédios e vacinas para tratar e prevenir a Covid-19. O PL precisa passar pela Câmara dos Deputados e, se aprovado, depende do parecer do Poder Executivo.
Em abril, o ministro das Relações Exteriores, Carlos França, declarou não considerar a quebra de patentes como caminho mais eficaz para acelerar a vacinação no País. Depois do posicionamento favorável dos Estados Unidos, no dia 7 de maio, uma nova posição foi divulgada em nota conjunta dos Ministérios das Relações Exteriores, da Saúde, da Economia e de Ciência, Tecnologia e Inovações.
Foto: JUSTIN TALLIS / AFP
Qualquer pessoa pode ser vacinada para Covid-19 nos Estados Unidos da América.
Segundo o comunicado, o governo “recebeu com satisfação” a disposição dos Estados Unidos em discutir, na OMC, um acordo multilateral que permita a quebra temporária de patentes e torne viáveis esforços para aumentar a produção e a distribuição global de insumos e de vacinas.
O presidente da Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética (Anadem), Raul Canal, acredita que a quebra de patente da vacina teria pouco efeito prático no combate à pandemia de Covid-19 no Brasil. Ainda assim, defende a medida desde que seja acompanhada de alguma compensação.
“Aquele que vai fabricar deveria pagar uma espécie de royalty [parte do lucro] para o dono da patente, ou seja, ele perde o direito de produzir exclusivamente, mas o patrimônio intelectual dele precisa ser remunerado de alguma forma”, indica. Ele acredita que a adaptação é importante no sentido de evitar um futuro desestímulo à pesquisa. (Com Agência Estado)
Posicionamentos internacionais sobre quebra de patentes das vacinas
Após pressão internacional, o governo dos Estados Unidos manifestou apoio à suspensão de patentes de vacinas contra a Covid-19. Na sequência, a China também defendeu a caracterização dos imunizantes como produto público global.
Depois do anúncio americano, a União Europeia, que tinha se manifestado contra a quebra de patentes, também sinalizou que pode mudar de posição. Em outubro do ano passado, a Índia e a África do Sul levaram à Organização Mundial do Comércio (OMC) uma proposta de suspensão das patentes de produtos de combate ao novo coronavírus.
Foto: JIM WATSON / AFP
O presidente eleito dos EUA, Joe Biden, recebe o segundo curso da vacina Pfizer-BioNTech Covid-19 em 11 de janeiro de 2021 no Christiana Hospital em Newark, Delaware, administrado pela enfermeira-chefe executiva Ric Cuming. (Foto de JIM WATSON / AFP)
A proposta foi apoiada por mais de 100 países. Para ser aprovada, a decisão da quebra de patentes precisa do apoio de forma unânime dos 164 membros da OMC, responsável por deliberar as regras comerciais entre as nações.
A OMS tem defendido reiteradamente a quebra de patentes para o acesso equitativo aos imunizantes no mundo. O diretor-geral da organização, Tedros Adhanom Ghebreyesus, classificou a distribuição global de vacinas contra o coronavírus como um “escândalo de desigualdade que está perpetuando a pandemia”.
Segundo Tedros, 75% dos imunizantes aplicados no mundo foram administrados em apenas dez países. “Não há maneira diplomática de dizer isso: um pequeno grupo de países que fabrica e compra a maioria das vacinas do mundo controla o destino do resto do planeta”, criticou durante a abertura da Assembleia Global de Saúde neste mês.
Foto: Reprodução
Tedros Adhanom é o diretor-geral da OMS
O programa Covax Facility, iniciativa da OMS, já distribuiu 72 milhões de doses de profiláticos a 125 países, mas o volume não é suficiente. A entidade pediu aos Estados membros o compartilhamento de doses de vacina pedindo para atingir a meta de vacinar pelo menos 10% da população de todos os países até setembro, e um “impulso até dezembro” para atingir nossa meta de vacinar pelo menos 30% até o fim ano”, destacou.
A transferência de tecnologias é essencial para acelerar a imunização global contra a Covid-19, conforme a diretora-geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala, afirmou durante a Cúpula de Saúde do G-20. A dirigente disse esperar por “progresso nas negociações” pela quebra de patentes até julho. (Com informações da Agência Brasil e da Agência Estado)