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Capacete Elmo: mentes e mãos se unem para salvar vidas na maior crise sanitária do século

O médico Marcelo Alcântara colocou na mesa a ideia de construir um dispositivo não invasivo para tratar a insuficiência respiratória causada pela covid-19 (Foto: Edimar Soares)

Aflaudísio Dantas
aflaudisio@ootimista.com.br

Dizer que oportunidades nascem em épocas de crise e que a inovação salva vidas não são bordões ou slogans vazios, mas, sim, frases que foram ainda mais legitimadas durante o maior desafio enfrentado pela humanidade no século XXI. Foi no auge da pandemia de covid-19 que surgiu com a efetiva participação da Universidade Federal do Ceará (UFC) o capacete Elmo, ferramenta determinante para salvar milhares de vidas.

“Nós tínhamos a motivação e o interesse tanto dos indivíduos, quanto das instituições”

Da concepção da ideia até o patenteamento e autorização para uso do equipamento, foi um tempo recorde de apenas três meses – 4 de abril até 10 de julho de 2020. O capacete Elmo é fruto de trabalho realizado a muitas mãos e mentes, dos mais diversos segmentos da sociedade. Uma verdadeira força-tarefa de inovação em defesa da vida e que, desde a criação, coleciona diversos prêmios.

“Nós tínhamos a motivação e o interesse tanto dos indivíduos, quanto das instituições. Isso mostra que é possível para a nossa sociedade e para o nosso Estado enfrentarmos problemas complicados, desde que a gente consiga se unir em torno de um propósito”, afirma Marcelo Alcântara, médico pneumologista, professor associado e coordenador do Laboratório de Respiração da UFC (RespLab). Foi ele quem colocou na mesa a ideia de construir um dispositivo não invasivo para tratar a insuficiência respiratória causada pela covid-19.

Propósito

Juntaram-se à causa a Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), a Escola de Saúde Pública do Ceará, a Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec), o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai-CE) e a Universidade de Fortaleza (Unifor).

Mais tarde, na fase de prototipagem, entrou em campo a Esmaltec, indústria cearense que utilizou seu know-how na fabricação de eletrodomésticos para produzir o capacete Elmo. A ideia promissora e o senso de urgência não podiam ser argumentos mais que suficientes para juntar tantos membros distintos.

Ao menos 4 mil vidas foram salvas graças à utilização do capacete Elmo em hospitais cearenses (Foto: Divulgação/Governo do Ceará)

Outro grande desafio era que muitos médicos da linha de frente morreram durante a crise sanitária mundial. Por isso, um equipamento que impedisse a contaminação no ambiente hospitalar seria fundamental.

“O capacete parecia a melhor solução e fomos por esse caminho. Foi um trajeto muito original, porque no restante do Brasil a alternativa foi desenvolver respiradores, assim como no resto do mundo, e não foi um bom caminho, porque não havia tempo para isso”, lembra Alcântara. Segundo o professor, ao menos 4 mil vidas foram salvas no Ceará graças à utilização do capacete Elmo nos hospitais. Uma dessas vidas foi justamente a de um profissional de saúde.

“Meu Elmo salvador”

“Eu o chamo de ‘meu Elmo salvador’”, afirma Weiber Xavier, 58, clínico intensivista e professor universitário. Ele atendia pacientes com covid-19 quando contraiu a doença. Pensava ser um quadro leve, mas a situação logo se mostrou dramática. “Tive uma evolução muito grave, comprometendo 90% da área pulmonar”, conta.

“Eu fui o primeiro médico a usar o Elmo como paciente, e um dos que tiveram sucesso”

O médico Weiber Xavier atendia pacientes com covid quando contraiu a doença e precisou usar o Elmo (Foto: Divulgação/Arquivo pessoal)

Mais complicações apareceram. O médico se viu acometido por pneumonia e acabou internado numa Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Muito provavelmente seria necessária a intubação, procedimento invasivo, mas que daria uma chance para o agora paciente.

Ocorre que o Elmo entrou em ação. Xavier passou a respirar com ajuda do equipamento, sem a necessidade de ser entubado e sem as implicações que o procedimento poderia causar. “Eu fui o primeiro médico a usar o Elmo como paciente e um dos que tiveram sucesso. O Elmo é fabuloso, usei também em outros pacientes”, celebra.

Legado

A inovação que originou o capacete cearense deixou um legado que se espalha nos sistemas de saúde pública e suplementar do Brasil. Hoje, o equipamento já é usado para tratar outras doenças.

Hoje, o equipamento é usado no tratamento de outras doenças (Foto: Divulgação/Governo do Ceará)

“Por exemplo, a pneumonia, que leva à insuficiência respiratória. É um quadro parecido com o que a covid-19 causava. Também há a insuficiência cardíaca e o edema de pulmão, em que o uso do capacete pode ser feito”, explica Alcântara.

O Elmo até já está gerando “filhos”. Isto porque o RespLab trabalha no desenvolvimento do Elminho, uma versão pediátrica do capacete de respiração assistida. “É um capacete pediátrico, para a população de 2 a 14 anos de idade. “A pediatria sofre muito. As crianças são uma população vulnerável, quando elas precisam de suporte respiratório, muitas vezes não têm acesso”, ressalta.

Já existe uma equipe de pós-graduandos da UFC trabalhando no projeto que buscará financiamento para que a inovação continue salvando vidas.

Saiba mais

O capacete cearense conseguiu reduzir em até 60% a necessidade de internação em UTI (Foto: Edimar Soares)

Custo: a produção de um exemplar do Elmo custa em torno R$ 1 mil, segundo Marcelo Alcântara. Já um ventilador mecânico, por exemplo, custa em média R$ 150 mil.

Do que é feito: o capacete, basicamente, é uma cúpula de PVC, um material bastante simples. Ele está acoplado a um colar que fica no pescoço de silicone no pescoço do paciente. Esse colar fica vedado como se fosse uma gola alta de uma camiseta.

Como funciona: O Elmo funciona com fluxo de gases. Coloca-se uma mistura de gases medicinais, oxigênio e ar comprimido em proporções variadas. Há um circuito para a entrada dos gases e outro para permitir a saída ou exalação do ar respirado pelo paciente, com o descarte do gás carbônico (CO2). Na saída do gás há uma válvula para garantir a pressurização dentro do capacete. Assim o ELMO funciona sem a necessidade de nenhuma máquina adicional ou mesmo de energia elétrica.

Eficácia: o Elmo conseguiu reduzir em até 60% a necessidade de internação em Unidades de Terapia Intensiva (UTI).

Inspiração: A ideia do Elmo se inspirou a partir de um capacete semelhante utilizado de forma experimental na Itália no início desse século. Um estudo americano com este capacete italiano mostrou um bom resultado em pacientes com lesão pulmoanr grave. Esse foi o ponto de partida para a criação do capacete como o conhecemos, que possui diferenças e vantagens em relação ao seu parente distante. Fora da Europa quase não se usa capacete para suporte respiratório e nunca no Brasil.

Desenvolvimento: o processo médio para o patenteamento de uma tecnologia pode chegar a dois anos, mas, dada a mobilização, todo o processo com o Elmo durou pouco mais de três meses. O protótipo surgiu 11 dias após o primeiro teste de conceito. Foram mais sete protótipos até a primeira versão utilizada no tratamento de pacientes da rede pública.

Os desafios de proteger as propriedades intelectuais da UFC

Lívia Maria Queiroz tem a função de zelar, a grosso modo, pelas propriedades intelectuais da Universidade Federal do Ceará  (Foto: Divulgação)

Lívia Maria Queiroz tem a função de zelar, a grosso modo, pelas propriedades intelectuais da Universidade Federal do Ceará (UFC). Formada em Administração de Empresas, com especialização em gestão e mestrado em Inovação Tecnológica, ela cuida de patentes como a do capacete Elmo.

Mais do que cuidar do patrimônio intelectual da universidade, também é tarefa dela mostrar ao mercado as capacidades estratégicas da produção no seio acadêmico.

Em entrevista ao O Otimista, ela detalha o processo de obtenção de patentes e os desafios enfrentados pela UFC para se manter na vanguarda da inovação.

O OtimistaA senhora pode falar um pouco sobre sua trajetória?

Livia Queiroz: Estou atualmente diretora de propriedade intelectual da UFC Inova, que é o Núcleo de Inovação Tecnológica da Universidade Federal do Ceará. A diretoria em que eu atuo é responsável pela gestão de todas as tecnologias protegidas pela universidade com a grande missão de analisá-las estrategicamente, para colocar no mercado. Tenho atuação há quase sete anos nesse ramo, tenho mestrado em Inovação Tecnológica, sou formada em Administração de Empresas pela Uece (Universidade Estadual do Ceara), tenho especialização em Gestão de Empresas. Tenho desenvolvido, como habilidade, essa parte de negociação com o mercado, mapeamento do mercado para entender como a universidade consegue transbordar tecnologia para a sociedade.

“Não tenho dúvida do nosso potencial, mas me questiono se, no atual ritmo do Brasil, ele consegue competir com esses grandes países, com essas grandes economias”

O OtimistaComo se dá o processo de análise e interação com o mercado para mostrar o que a UFC tem a oferecer?

Livia Queiroz: Por meio de políticas públicas, as tecnologias, principalmente as patentes, estão concentradas em universidades e institutos federais, até por uma questão de incentivo por meio da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Houve um boom de patentes, por volta de 2016 e 2017, e isso gerou um portfólio. A análise de mercado é entender o que o setor privado está cobrando e entender que ele também responde ao que a sociedade almeja. Entender, mapear esses setores, essas indústrias, para vermos a compatibilidade com as nossas tecnologias. Elas são oriundas de grupos de pesquisa da universidade. As universidades federais e os institutos federais, por exemplo, têm essa grande missão e esse grande desafio de tentar negociar com a iniciativa privada para otimizar essas tecnologias para a sociedade.

O Otimista: Qual o grande desafio da gestão da inovação?

Livia Queiroz: O desafio de gestão de tecnologia, para o licenciamento, envolve muitos aspectos. Envolve o aprendizado e cultura da instituição, envolve a negociação entre as partes, envolve também relacionamento interpessoal, envolve entender a tecnologia, envolve classificar e mapear o que o mercado necessita. Eu diria não temos só um desafio, são vários, porque estão inter-relacionados. A universidade está tentando maturar a gestão para que a gente consiga sentar diante do setor privado e conseguir enxergar oportunidades para ambos os lados.

O Otimista: Você acredita que o mercado e a sociedade como um todo estão preparados para absorver inovações à frente de seu tempo?

Livia Queiroz: Eu não tenho dúvidas disso, no entanto, a gente não pode esquecer que existem grandes mercados, como a China, a Índia, as Coreias… Que estão sempre à frente disso tudo. Então, eu não tenho dúvida do nosso potencial, mas me questiono se, no atual ritmo do Brasil, ele consegue competir com esses grandes países, com essas grandes economias.

O OtimistaPartindo para o histórico de patentes da UFC, em termos didáticos, como funciona o processo para obter a patente?

Livia Queiroz: Primeiro, é importante diferenciar dois públicos: quem está dentro de instituições de ensino e pesquisa e quem não está. Quando se está dentro de uma instituição de ensino e pesquisa, tem um setor que é o Núcleo de Inovação Tecnológica. Quando ela vem da pesquisa, por meio da universidade, ela começa a partir de um pedido em que nos é informado o que querem proteger. Patente é um tipo de propriedade intelectual. Ela precisa alcançar alguns pré-requisitos: ter aplicação para e na indústria; tem que ser nova, nunca deve ter sido publicada, e tem que ter originalidade. É o que a gente chama de atividade inventiva, não ser óbvia. E tem uma condição: que é uma suficiência, que é uma redação específica, que é o “patentês”. Tem que estar lá conforme a norma brasileira, que é gerenciada pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Atendendo esses pré-requisitos, pela universidade nós fazemos o pedido, diante do INPI, aí começa um processo de acompanhamento.

O Otimista: E o que ocorre após o deferimento da patente?

Após o deferimento, nós pagamos uma GRU, que é uma guia de recolhimento da União, e logo depois é publicada a carta-patente, que são as 62 (cartas-patentes que a UFC possui). Muita gente fala: “a universidade tem 62 patentes”. Tem 62 concedidas, cartas-patentes, em termos de pedidos aguardando análise. Mais em relação aos pedidos de deferimentos, nós hoje temos mais de 400. Agora se você não está dentro de uma instituição, se você é pessoa física ou você é uma empresa e desenvolve algo, pode procurar direto no site do INPI. Lá vai ter todo o passo a passo, toda a documentação.

“A inovação não necessariamente pode gerar dinheiro, mas ela pode gerar benefício social”

O Otimista: A senhora falou em mais de 400 pedidos de deferimentos, é muita coisa…

Na UFC, a gente sempre pensa em invenção e em grandes cientistas. Mas a invenção, a tecnologia, algo a ser desenvolvido, ela vem também do nosso dia a dia. Se nós tivéssemos a cultura da propriedade intelectual, lembrando que patente é um tipo de propriedade intelectual, se isso tivesse começado desde a escola, teríamos um outro tipo de pensamento. O Brasil só fala disso na pós-graduação.

O OtimistaInovação poderia ser uma disciplina ensinada nas escolas, desde o fundamental, por exemplo?

Livia Queiroz: Com certeza! Não gosto de comparar o Brasil a outras economias porque cada país tem sua história. Mas vamos só dá um exemplo para entender. Aquelas feiras de ciências que vemos em filmes americanos, por exemplo, de lá saem inovações. Em algumas high schools americanas, essas feiras levam investidores para dali ter possibilidade de sair novas tecnologias. A inovação não necessariamente pode gerar dinheiro, mas ela pode gerar benefício social.

O OtimistaExiste uma média de tempo nesse processo de patenteamento, da ideia até o deferimento?

Livia Queiroz: Fármacos costumam demorar uma média de seis a oito anos. Mas hoje já temos uma média de quatro a seis anos. O maior número de casos tem essa média. Nós já tivemos um tempo de dez anos. O INPI tem uma proposta de que, em breve, esse período seja de dois a quatro anos. Então, trabalhamos com a média de quatro a seis anos. No entanto, tem casos que você pode se enquadrar como prioritário, a depender do tipo de tecnologia e seu perfil.

Reportagem

UFC 70 anos: passado, presente e futuro

Projeto: Raone Saraiva
Edição: Danielber Noronha e Raone Saraiva
Textos: Aflaudísio Dantas e Candice Machado
Fotos: Edimar Soares, Morena Lima e Davi Farias
Audiovisual: Aldemir Neto e Isaac Araújo